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SINAIS & SINTOMAS

Esportes de contato: pancadas repetitivas na cabeça fazem mal?

Nem sempre o impacto parece grave na hora, e é comum que sintomas apareçam horas ou até dias depois

Dra. Ana Gandolfi

Dra. Ana Gandolfi

5min • 13 de nov. de 2025

Criança usando luvas de boxe treina em uma academia, golpeando um saco de pancadas.

Nos últimos anos, médicos e pesquisadores vêm alertando para os efeitos cumulativos dessas pancadas na cabeça | Foto: Freepik

Divertido, saudável e perfeito para fazer amigos, a prática de esportes contribui com uma série de benefícios para o desenvolvimento físico, emocional e social — especialmente na infância e adolescência. Futebol, judô, taekwondo, boxe, vôlei, basquete, skate e até ginástica são atividades que ajudam a melhorar a disciplina, a coordenação motora e o trabalho em equipe.

No entanto, quando se fala em esportes de contato, como artes marciais, é preciso ter atenção: pancadas repetitivas na cabeça, mesmo que leves, podem trazer riscos à saúde neurológica a longo prazo.

Nos últimos anos, médicos e pesquisadores vêm alertando para os efeitos cumulativos desses traumas. Ainda que um impacto isolado nem sempre cause danos graves, a repetição frequente de pequenas concussões pode gerar consequências sérias e permanentes. Isso vale não apenas para atletas profissionais, mas também para jovens em formação, cujos cérebros ainda estão em desenvolvimento.

Para esclarecer os principais riscos, conversamos com a neurocirurgiã Ana Gandolfi.

O que são esportes de contato (e por que causam preocupação)?

Os esportes de contato são modalidades em que há choque físico entre os participantes — seja por colisões diretas, quedas, golpes ou disputas de bola. Isso inclui esportes de combate, como boxe, judô e artes marciais, e esportes coletivos, como futebol, basquete, rúgbi e hóquei.

O problema não está no contato em si, mas na frequência e intensidade dos impactos na cabeça. Enquanto uma pancada ocasional dificilmente causa dano duradouro, a repetição constante pode provocar alterações cerebrais sutis e cumulativas. Isso vale mesmo quando não há perda de consciência ou sinais visíveis de trauma.

De acordo com Ana Gandolfi, os impactos repetidos podem causar sérios danos cerebrais — não apenas em esportistas, mas também em qualquer pessoa sob risco de trauma, como motoqueiros ou profissionais que sofrem acidentes frequentes.

Quando a pancada na cabeça é perigosa?

O impacto repetitivo na cabeça é definido como qualquer série de choques, pancadas ou vibrações que atingem o crânio, mesmo que de baixa intensidade — e que, somados ao longo do tempo, podem causar microlesões.

Diferentemente dos traumas moderados e graves, que têm quadro clínico mais exuberante, os impactos repetitivos na cabeça nem sempre geram sintomas claros imediatos.

Mas, vale apontar que a ausência de sintomas imediatos não significa ausência de risco! Mesmo lesões leves, quando ocorrem várias vezes, podem provocar microlesões e outras alterações metabólicas no cérebro. Com o tempo, o processo pode levar ao desenvolvimento de doenças neurológicas, como a encefalopatia traumática crônica (ETC).

Em esportes como futebol, por exemplo, cabecear a bola centenas de vezes ao longo de um ano já é considerado uma forma de impacto repetitivo. O mesmo vale para atletas de judô, que sofrem quedas constantes, ou para jovens que praticam boxe recreativo e recebem golpes leves, mas frequentes, na região da cabeça.

No caso de crianças e adolescentes, a preocupação é maior porque seus cérebros ainda estão em fase de maturação. O tecido cerebral é mais vulnerável e as conexões nervosas estão em desenvolvimento. Logo, qualquer lesão repetida pode interferir na formação dessas estruturas, com possíveis reflexos em atenção, memória, comportamento e desempenho escolar.

Por que o cérebro infantil é mais vulnerável?

Crianças e adolescentes não estão necessariamente mais expostos a traumas, mas o cérebro em desenvolvimento é naturalmente mais sensível aos impactos.

Isso acontece porque, segundo Ana Gandolfi, a cabeça das crianças é proporcionalmente maior em relação ao corpo, o que favorece desequilíbrios e quedas. Além disso, o pescoço ainda é frágil e os músculos, em processo de fortalecimento, não conseguem amortecer bem os choques.

Para complementar, em adolescentes, o sistema nervoso ainda está em fase de amadurecimento. Por isso, a recuperação após uma concussão tende a ser mais lenta — e, se um novo trauma ocorrer nesse intervalo, a probabilidade de causar danos duradouros aumenta de forma significativa.

Também não é incomum que, nessa faixa etária, os sintomas neurológicos passem despercebidos pelos pais ou responsáveis. As crianças muitas vezes não conseguem descrever bem o que sentem — podem apenas parecer irritadas, cansadas ou distraídas.

Já os adolescentes, por medo de se afastar dos treinos ou das competições, costumam minimizar os sintomas e seguir jogando, o que pode agravar ainda mais o quadro.

Riscos do impacto repetitivo na cabeça

Os principais riscos envolvem danos neurológicos progressivos, que podem surgir mesmo após traumas leves e aparentemente inofensivos.

Síndrome do segundo impacto

A síndrome do segundo impacto acontece quando uma pessoa sofre um novo trauma na cabeça antes de estar completamente recuperada de uma concussão anterior. O segundo impacto, mesmo que seja leve, pode desencadear um inchaço cerebral rápido e desproporcional, levando a um quadro de edema cerebral difuso, perda de consciência e, em muitos casos, risco de morte.

A síndrome afeta principalmente jovens atletas, cujos cérebros ainda estão em desenvolvimento, mas pode ocorrer em qualquer pessoa submetida a traumas repetidos na cabeça.

Os sinais de alerta podem incluir dor de cabeça persistente, tontura, irritabilidade, distúrbios do sono e dificuldade de concentração após o primeiro impacto — sintomas que indicam que o cérebro ainda está vulnerável e precisa de tempo para se recuperar.

Encefalopatia traumática crônica (ETC)

Quando os traumas na cabeça se repetem ao longo do tempo, o quadro se torna ainda mais preocupante. Isso porque as lesões acumuladas podem evoluir para a encefalopatia traumática crônica (ETC) — uma doença neurodegenerativa progressiva, causada por impactos repetidos, mesmo que leves.

Ao longo dos anos, muitos pacientes com histórico de impactos sucessivos desenvolvem demência precoce, geralmente entre os 40 e 45 anos, além de alterações motoras semelhantes às observadas na doença de Parkinson e transtornos psiquiátricos variados, conforme explica Ana Gandolfi.

Como se trata de uma condição irreversível, os sintomas podem demorar anos para aparecer, surgindo muitas vezes após o fim da carreira esportiva ou da exposição aos traumas. Por esse motivo, como a ETC não tem cura, é muito importante prevenir impactos repetidos e reconhecer sinais precocemente.

Distúrbios cognitivos

Os impactos repetitivos também podem gerar dificuldade de concentração, lapsos de memória e lentidão no raciocínio — sintomas que se refletem no desempenho escolar e nas atividades diárias, afetando a aprendizagem, a atenção e o rendimento geral.

Mesmo quando não há lesão visível nos exames, as microlesões cerebrais alteram a comunicação entre os neurônios, comprometendo funções mentais básicas. Com o tempo, essas alterações podem se tornar permanentes, especialmente se os traumas ocorrerem em períodos próximos.

Problemas emocionais e comportamentais

As pancadas na cabeça não afetam apenas o funcionamento cognitivo, mas também o comportamento e o equilíbrio emocional. É comum o surgimento de irritabilidade, impulsividade, crises de raiva e mudanças bruscas de humor, que muitas vezes são confundidas com questões psicológicas isoladas.

Alterações no sono

A insônia e a sonolência diurna estão entre os sintomas mais relatados após traumas repetidos. O cérebro lesionado apresenta dificuldade para manter o ritmo normal do ciclo do sono, o que prejudica o descanso e a recuperação.

Em crianças e adolescentes, o sono de má qualidade impacta diretamente o crescimento, a aprendizagem e o humor, gerando um ciclo de fadiga e irritabilidade que interfere na rotina escolar e esportiva.

Qual é a diferença entre concussões leves e lesões acumuladas?

A concussão é uma forma “leve” de traumatismo cranioencefálico. A pessoa pode ter uma breve perda de consciência ou apenas sentir tontura, dor de cabeça, enjoo, confusão mental ou visão turva. Os exames de imagem, como tomografia ou ressonância, costumam não mostrar lesões visíveis, já que o dano é funcional, e não estrutural.

Contudo, isso não significa que ela seja inofensiva. O problema surge quando há múltiplas concussões ao longo do tempo, mesmo que pequenas. Cada episódio gera pequenas alterações químicas e inflamatórias microestruturais no cérebro, e a repetição contínua pode levar a uma lesão neurodegenerativa.

De acordo com Ana Gandolfi, os traumas de crânio são classificados em três graus:

  • Leve: o paciente desperta logo após o impacto, sem rebaixamento de consciência;
  • Moderado: há algum rebaixamento, com sonolência ou confusão mental mais intensa;
  • Grave: ocorre perda prolongada de consciência ou coma.

Portanto, apesar da concussão ser considerada leve, o acúmulo de lesões ao longo dos anos pode provocar danos comparáveis aos de um único impacto grave.

Os sintomas podem desaparecer em poucos dias, criando a falsa impressão de que tudo está bem, mas as sequelas microscópicas se acumulam silenciosamente, sobretudo quando não há afastamento adequado nem acompanhamento médico.

Pancada na cabeça: quanto tempo de observação é necessário?

O período de observação após uma pancada na cabeça deve durar pelo menos 48 horas, intervalo considerado crítico para o surgimento de sintomas de alerta, como sonolência intensa, vômitos, perda de equilíbrio, fala arrastada, confusão mental ou dificuldade para acordar.

Durante as primeiras horas, é fundamental que a pessoa não permaneça sozinha, evite longos períodos de sono e, sempre que possível, conte com o acompanhamento de um familiar ou profissional de saúde.

Em crianças e idosos, a atenção deve ser ainda maior, pois os sinais costumam aparecer de forma mais discreta. Diante de qualquer indício de piora, a orientação é buscar atendimento médico imediatamente.

Como identificar sinais de alerta em crianças e adolescentes?

Nem sempre uma pancada na cabeça causa sintomas imediatos, mas alguns sinais devem ser observados com muita atenção nas horas e dias seguintes ao trauma, como:

  • Dor de cabeça persistente ou que piora com o tempo;
  • Tontura ou perda de equilíbrio;
  • Náusea ou vômitos;
  • Visão turva ou dupla;
  • Sonolência excessiva ou dificuldade para acordar;
  • Irritabilidade, agitação ou comportamento fora do comum;
  • Dificuldade de concentração ou esquecimento;
  • Alterações no sono;
  • Confusão mental, fala arrastada ou desorientação;
  • Convulsões (em casos graves).

Crianças pequenas podem apresentar sinais mais sutis, como choro excessivo, recusa para comer ou sono irregular. Em adolescentes, é comum surgirem queixas de dor de cabeça e fadiga que parecem inofensivas, mas indicam a necessidade de avaliação.

Pais, técnicos e professores devem estar atentos e não subestimar sintomas aparentemente leves. Mesmo que a criança pareça bem, se houver qualquer dúvida, o ideal é procurar avaliação médica.

Veja também: Cirurgia de coluna: 5 condições em que ela pode ser necessária

Perguntas frequentes

1. Uma pancada leve na cabeça pode causar danos ao cérebro?

Sim, mesmo um trauma leve pode causar alterações temporárias na função cerebral. A pessoa pode sentir tontura, dor de cabeça, enjoo ou ficar confusa por alguns instantes — isso já é suficiente para caracterizar uma concussão.

Quando esse tipo de impacto se repete, mesmo em baixa intensidade, há risco de acúmulo de lesões microscópicas, que podem afetar o equilíbrio, a memória e a capacidade de concentração. Por isso, não existe “pancada leve” quando se trata da cabeça.

2. Como saber se uma criança ou adolescente teve uma concussão?

Os sinais podem variar, mas normalmente incluem dor de cabeça persistente, tontura, sonolência, enjoo, confusão mental, fala arrastada, dificuldade para lembrar ou se concentrar. Em crianças pequenas, pode haver irritabilidade, choro constante, recusa para comer ou sono irregular.

Nem sempre os sintomas aparecem na hora, alguns surgem horas depois do impacto. Então, após qualquer pancada significativa, é importante observar o comportamento da criança e buscar avaliação médica se algo parecer diferente.

3. Quanto tempo é necessário para se recuperar de uma concussão?

O tempo de recuperação varia conforme a gravidade da concussão e a idade do paciente. Em geral, o repouso total dura de 7 a 14 dias, mas, em crianças e adolescentes, pode levar mais tempo.

Durante o período de recuperação, é importante evitar atividades físicas intensas, uso excessivo de telas, falta de sono e situações estressantes. O retorno deve ser gradual e supervisionado, com aumento progressivo da carga de esforço.

4. O que acontece no cérebro depois de uma pancada?

Quando ocorre um impacto, o cérebro se move dentro do crânio, podendo esticar ou romper pequenas conexões entre neurônios. Isso altera temporariamente a função cerebral, provocando confusão, dor de cabeça, tontura e desequilíbrio.

Com o tempo e o repouso adequado, o cérebro tende a se recuperar. No entanto, se o trauma se repete antes da cicatrização completa, essas conexões se tornam cada vez mais frágeis, levando à perda de neurônios e ao risco de doenças degenerativas.

5. Quais exames podem ser feitos após um trauma craniano?

O primeiro passo é a avaliação clínica, que envolve perguntas sobre o trauma, observação de sintomas e testes neurológicos. Em casos de suspeita de lesão mais grave, o médico pode solicitar tomografia computadorizada ou ressonância magnética para descartar sangramentos ou fraturas.

Contudo, em concussões leves, os exames normalmente não mostram alterações, porque o dano é funcional, e não estrutural.

Em casos específicos, podem ser realizados testes cognitivos e de equilíbrio para acompanhar a evolução do paciente. O acompanhamento contínuo é mais importante do que o exame isolado.

6. O uso de capacetes evita os riscos de impacto na cabeça?

O capacete é uma medida importante de proteção, mas não elimina completamente o risco. Ele reduz a força do impacto e protege contra lesões externas, como fraturas e cortes, mas não impede que o cérebro se mova dentro do crânio durante uma colisão.

Ou seja, mesmo usando o equipamento adequado, ainda pode ocorrer uma concussão. Por isso, o uso deve ser acompanhado de técnica correta, supervisão e respeito aos limites do corpo. O equipamento é uma barreira importante, mas a prevenção vai muito além dele.

Veja também: Hérnia de disco: o que é, causas, sintomas e como tratar

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Escrito por Dra. Ana Gandolfi

Sobre

Médica e Neurocirurgiã pela EPM/UNIFESP. Doutorado em medicina baseada em evidências na EPM/UNIFESP. Coordenadora do setor de neurotrauma e distúrbios da circulação liquórica e preceptora da residência da Disciplina de Neurocirurgia da EPM/UNIFESP. Preceptora do Ambulatório de Concussão Cerebral do Centro de Traumatologia do Esporte da EPM/UNIFESP. Preceptora da residência médica em neurocirurgia da UNIFESP/EPM. Desde de 2024 é também podcaster, sendo co-fundadora do Podcast Médico de quê?.

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