DOENÇAS & CONDIÇÕES
Cardiopatia chagásica: como se manifesta a fase crônica da doença de Chagas?
A cardiopatia chagásica é a forma mais grave da fase crônica da doença, capaz de causar arritmias e insuficiência cardíaca.
Dra. Gisele Bachur
5min • 2 de dez. de 2025

A cardiopatia chagásica se desenvolve de forma lenta e progressiva após a infecção inicial pelo Trypanosoma cruzi | Foto: Freepik
Com um desenvolvimento lento e silencioso, a doença de Chagas pode evoluir por muitos anos sem causar sintomas, enquanto o parasita produz pequenas lesões contínuas no organismo.
Quando ela não é identificada e tratada na fase aguda, a doença pode avançar lentamente e afetar o coração ao longo dos anos, situação em que surge a cardiopatia chagásica — marcada por arritmias, fraqueza do músculo cardíaco e risco elevado de complicações graves.
“A cardiopatia chagásica se desenvolve de forma lenta e progressiva após a infecção inicial pelo Trypanosoma cruzi. Após a fase aguda, a maioria entra em fase indeterminada, sem sintomas. Com o passar dos anos, geralmente de 10 a 30 anos, parte dos pacientes evolui para a forma cardíaca”, explica a cardiologista Gisele Bachur.
O que é cardiopatia chagásica?
A cardiopatia chagásica, também conhecida como cardiomiopatia crônica da doença de Chagas, é uma lesão progressiva do músculo do coração, provocada pela infecção persistente pelo protozoário Trypanosoma cruzi, que é o agente causador da doença de Chagas.
A evolução ocorre de maneira lenta, e o parasita mantém uma inflamação contínua no tecido cardíaco, provocando destruição das fibras musculares, alteração da condução elétrica e dilatação das câmaras cardíacas ao longo dos anos.
A fase sintomática costuma surgir após um período prolongado sem sintomas clínicos, caracterizado por arritmias, palpitações, falta de ar, inchaço nas pernas, risco de insuficiência cardíaca e possibilidade de morte súbita.
Vale apontar que não são todos os pacientes que vão desenvolver a forma cardíaca, e muitos permanecem assintomáticos por toda a vida, vivendo normalmente sem problemas.
Apenas 20% a 30% dos pacientes cronicamente infectados (aqueles que estavam na forma indeterminada) irão progredir, anos ou décadas depois, para cardiopatia chagásica ou lesões no esôfago e/ou intestino grosso (megaesôfago e megacólon).
Como ocorre a cardiopatia chagásica?
Para entender melhor como a cardiopatia surge, vamos imaginar uma pessoa que foi infectada ainda na infância, durante o contato com o barbeiro em uma área rural.
Ela passa por uma fase aguda da doença de Chagas, normalmente discreta, com sintomas que podem ser confundidos com uma virose comum, como febre, dor de cabeça e fraqueza. Então, a infecção inicial é controlada pelo organismo, mas o Trypanosoma cruzi permanece dentro das células cardíacas, escondido do sistema imune.
A partir disso, a pessoa entra em uma fase indeterminada, sem sintomas, de acordo com Gisele. A inflamação, no entanto, continua de forma discreta e constante, produzindo microlesões no músculo cardíaco, pequenas cicatrizes e danos progressivos ao sistema elétrico do coração.
Com o passar dos anos, normalmente 10 a 30 anos, os danos silenciosos no coração se acumulam e o órgão deixa de compensar a inflamação contínua. Assim, surge a fase crônica cardíaca, marcada por cansaço, palpitações, falta de ar, inchaço nas pernas e risco elevado de arritmias e insuficiência cardíaca.
Qual é o mecanismo da infecção que leva ao dano no músculo cardíaco?
De acordo com Gisele, o dano cardíaco decorre de três pilares principais, sendo eles:
-
- Inflamação crônica mediada pelo sistema imune: a inflamação prolongada destrói fibras do músculo cardíaco porque o sistema imune, ao tentar controlar o parasita, mantém uma resposta exagerada que acaba atacando estruturas do próprio coração, produzindo lesões contínuas e perda progressiva da capacidade de contração;
- Lesão direta pelo parasita: o barbeiro invade as células cardíacas e forma agrupamentos dentro do tecido, causando ruptura celular, desencadeando inflamação local e contribuindo para o enfraquecimento do músculo;
- Fibrose miocárdica difusa e focal: a cicatrização repetida gera áreas de fibrose espalhadas e também pontos de rígida cicatrização localizada, o que altera a arquitetura do órgão, dificulta o fluxo elétrico normal e favorece o surgimento de arritmias, dilatação ventricular e queda da função de bombeamento.
“O contínuo processo inflamatório cicatricial gera arritmias, disfunção contrátil e aneurismas localizados. O resultado é uma miocardiopatia dilatada peculiar, com regiões de fibrose junto a uma inflamação ativa”, complementa a cardiologista.
Como a cardiopatia chagásica se manifesta?
De acordo com Gisele, a forma crônica cardíaca apresenta as seguintes manifestações:
- Arritmias ventriculares e supraventriculares: alterações no ritmo do coração, com batimentos rápidos, irregulares ou descompassados;
- Bloqueios de condução: falhas na passagem do estímulo elétrico, que podem deixar o coração muito lento;
- Insuficiência cardíaca sistólica: o coração fica dilatado e perde força para bombear sangue;
- Tromboembolismos: formação de coágulos dentro do coração, que podem causar AVC ou embolias;
- Aneurisma apical de ventrículo esquerdo: dilatação localizada muito típica da doença de Chagas;
- Síncope ou pré-síncope: tonturas ou desmaios provocados por arritmias graves;
- Morte súbita: normalmente causada por taquicardia ventricular sustentada.
A evolução costuma ser lenta, começando com palpitações e cansaço e, ao longo dos anos, levando aos sintomas clássicos de insuficiência cardíaca.
Sintomas da cardiopatia chagásica
Quando os sintomas surgem, eles são resultado da falha do músculo cardíaco (insuficiência cardíaca) e dos problemas no sistema elétrico do coração (arritmias). Os principais incluem:
- Palpitações;
- Falta de ar;
- Cansaço fácil;
- Inchaço nas pernas;
- Dor ou desconforto no peito;
- Tonturas ou desmaios;
- Batimentos muito rápidos ou muito lentos.
Importante: muitas vezes, a primeira mudança que mostra que a doença está avançando aparece nos exames, como um eletrocardiograma alterado, mesmo antes de qualquer sintoma surgir.
Como é feito o diagnóstico?
O diagnóstico começa pela confirmação da infecção pelo T. cruzi e segue com exames que avaliam ritmo, força e estrutura do coração. Segundo Gisele, os principais exames incluem:
- Sorologias: ELISA e imunofluorescência (dois métodos diferentes para confirmar);
- Eletrocardiograma: mostra alterações do ritmo e da condução elétrica, como bloqueios e batimentos extras.;
- Holter 24h: monitora o coração por um dia inteiro para detectar arritmias que podem não aparecer no exame rápido;
- Ecocardiograma: avalia tamanho e força do coração e identifica dilatação, aneurisma apical e coágulos;
- Ressonância cardíaca: padrão-ouro para avaliar áreas de inflamação e fibrose (cicatrizes) com grande precisão;
- Teste ergométrico: analisa como o coração se comporta durante exercício;
- Radiografia de tórax: ajuda a ver aumento do coração e sinais de insuficiência cardíaca.
Como é feito o tratamento da cardiopatia chagásica?
O tratamento da cardiopatia chagásica é sempre individualizado, porque cada pessoa apresenta um grau diferente de comprometimento cardíaco, risco de arritmias e sintomas. A escolha dos medicamentos e dos dispositivos depende da avaliação detalhada feita pelo cardiologista, que define o esquema mais seguro e eficaz, então não se automedique!
No geral, podem ser adotadas duas abordagens:
Tratamento cardiológico
Quando a cardiopatia já está instalada, o foco principal passa a ser o tratamento cardiológico, que visa controlar arritmias, reduzir a progressão da insuficiência cardíaca e evitar complicações graves, como tromboembolismos e morte súbita.
Remédios para cardiopatia chagásica
A base do tratamento segue a mesma linha usada na insuficiência cardíaca, porque o coração dilatado e enfraquecido demanda de proteção contínua. Alguns dos medicamentos usados incluem:
- IECA, BRA ou ARNI: ajudam a reduzir a pressão dentro do coração, diminuem a sobrecarga e retardam a progressão da doença;
- Betabloqueador: controla o ritmo cardíaco, reduz arritmias e melhora a sobrevida;
- Espironolactona: atua contra a fibrose e melhora o desempenho do músculo cardíaco;
- Inibidores de SGLT2 (empagliflozina ou dapagliflozina): reduzem sintomas, diminuem hospitalizações e oferecem proteção adicional ao coração;
- Diuréticos conforme necessidade: aliviam a falta de ar e o inchaço, retirando o excesso de líquido que se acumula quando o coração perde força.
Cardiodesfibrilador Implantável (CDI)
A presença de arritmias graves aumenta o risco de morte súbita, e o CDI funciona como um “vigia” permanente do ritmo cardíaco. O dispositivo identifica arritmias perigosas e aplica choques para restabelecer o ritmo normal. Segundo Gisele, ele é indicado nas seguintes situações:
- Taquicardia ventricular sustentada;
- Fração de ejeção igual ou menor que 35%;
- Síncope causada por arritmia documentada.
Marcapasso
A falha na condução elétrica deixa o coração muito lento, causando tonturas e risco de desmaio. O marcapasso regula o ritmo e impede quedas bruscas da frequência cardíaca, sendo indicado quando há:
- Bloqueio atrioventricular avançado (Mobitz II ou total);
- Disfunção sinusal importante, que provoca bradicardia persistente.
Transplante cardíaco
A progressão da cardiopatia pode chegar a um ponto em que o coração não responde mais aos medicamentos nem aos dispositivos, como por exemplo:
- Insuficiência cardíaca que não melhora mesmo com tratamento completo;
- Arritmias que não podem ser controladas;
- Baixa sobrevida estimada, mesmo com todas as terapias disponíveis.
Nesses casos, o transplante de coração surge como alternativa para restaurar a função cardíaca e prolongar a vida.
Tratamento etiológico
O tratamento etiológico, realizado com medicamentos como o Benznidazol, é feito para combater o parasita, reduzindo a carga no organismo. Ele é extremamente eficaz na fase aguda ou na fase indeterminada, quando ainda não há danos estruturais importantes no coração.
Na fase crônica, ele pode ser indicado para reduzir a replicação residual do parasita, mas a fibrose formada não pode ser revertida, de acordo com Gisele.
Cardiopatia chagásica tem cura?
Na fase crônica, com a cardiopatia já estabelecida, a fibrose presente no músculo cardíaco não pode mais ser revertida. O uso do benzonidazol não consegue corrigir o dano estrutural existente, embora possa ser indicado em situações específicas para diminuir a replicação residual do parasita.
A partir daí, o tratamento foca em controlar arritmias, prevenir coágulos, evitar que a insuficiência cardíaca piore e melhorar a qualidade e o tempo de vida da pessoa. “A cura parasitológica completa é rara quando o coração já está acometido”, finaliza Gisele.
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Perguntas frequentes
Como ocorre a transmissão da doença de Chagas?
A transmissão da doença de Chagas ocorre principalmente pelo contato com fezes do barbeiro durante a picada, quando o protozoário entra pela pele lesionada ou pelas mucosas.
Ela também pode ocorrer por transfusão de sangue, transplante de órgãos, acidentes laboratoriais, da gestante para o bebê ou pela ingestão de alimentos contaminados com o parasita. A transmissão direta entre pessoas não ocorre no convívio social.
Quais são os sintomas da fase aguda da doença de Chagas?
A fase aguda da Doença de Chagas é a fase inicial, logo após a infecção, e é caracterizada pela alta circulação do parasita no sangue. No entanto, o mais importante a saber é que ela é, na maioria das vezes, assintomática ou apresenta sintomas leves e inespecíficos. Quando eles surgem, costumam ser:
- Febre persistente ou prolongada;
- Mal-estar e dor de cabeça (cefaléia);
- Fadiga e cansaço generalizado (astenia);
- Edema (inchaço) e aumento de gânglios (linfonodopatia);
- Aumento do fígado e do baço (hepatosplenomegalia).
Após a fase aguda, caso a pessoa não receba tratamento adequado, ela pode desenvolver a fase crônica da doença.
Como prevenir a doença de Chagas?
A prevenção da doença de Chagas exige atenção ao modo como ocorre a transmissão, e o controle começa pela redução da presença do barbeiro no ambiente doméstico. A aplicação de inseticidas de ação prolongada, realizada por equipes treinadas, ajuda a impedir que o inseto se estabeleça em paredes, telhados e locais de abrigo dentro das moradias.
A proteção das residências em áreas onde o barbeiro pode entrar voando por frestas ou aberturas inclui o uso de telas metálicas e mosquiteiros, criando barreiras físicas eficientes.
A adoção de cuidados pessoais durante atividades noturnas em regiões de mata, como pesca, acampamentos ou caçadas, inclui o uso de repelentes e roupas de mangas longas, reduzindo o risco de contato com o inseto.
Qual o período de incubação da doença de Chagas?
O intervalo entre a infecção pelo Trypanosoma cruzi e o surgimento dos primeiros sinais varia conforme a forma de transmissão:
- Transmissão pelo barbeiro: sintomas aparecem, em geral, entre 4 e 15 dias após a infecção;
- Transfusão de sangue ou transplante: o início das manifestações pode ocorrer após 30 a 40 dias, podendo se estender além disso;
- Transmissão oral: os sinais costumam surgir entre 3 e 22 dias;
- Acidentes laboratoriais ou exposição direta: sintomas podem se desenvolver em até aproximadamente 20 dias;
- Transmissão da gestante para o bebê: não existe um período definido, pois a passagem do parasita pode acontecer em qualquer fase da gravidez ou durante o parto.
O que eu faço se ver um barbeiro na minha casa?
As principais orientações do Ministério da Saúde se você encontrar um barbeiro em casa é:
- Evitar esmagar, apertar ou ferir o inseto;
- Proteger as mãos usando luvas ou um saco plástico;
- Colocar o barbeiro em um recipiente plástico bem fechado, de preferência mantendo-o vivo para facilitar a análise;
- Guardar separadamente os insetos coletados em locais distintos da casa ou do ambiente externo, como quarto, sala, cozinha ou áreas de mata.
Doença de Chagas tem cura?
A doença de Chagas pode ter cura nas fases iniciais, quando o tratamento com benzonidazol ou nifurtimox é iniciado logo após a infecção, período em que o parasita ainda se multiplica ativamente no organismo.
A eficácia costuma ser maior em crianças e em adultos tratados precocemente, aumentando a chance de eliminação completa do Trypanosoma cruzi
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